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Cotidiano
Segundo especialistas que trabalham com patrimônio, esse é um desmantelamento inédito, que não se viu nem em períodos autoritários no Brasil; entenda
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O empresário Luciano Hang, dono das lojas Havan, e Bolsonaro | /Reprodução/Facebook
A alvo constante de críticas do governo de Jair Bolsonaro (PL), o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) vive uma crise generalizada. Depois da paralisação do conselho consultivo por quase dois anos e da troca de funcionários do alto escalão, a instituição agora vê o reflexo disso numa série de medidas que podem tornar a principal entidade de preservação do patrimônio cultural do país num órgão-fantoche dos bolsonaristas.
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Segundo especialistas que trabalham com patrimônio, esse é um desmantelamento inédito, que não se viu nem em períodos autoritários no Brasil. Aprovação expressa de licenciamento ambiental, distribuição de cargos-chave para aliados do governo, diminuição do orçamento e paralisação do mestrado são algumas das situações que vêm abalando o instituto.
Agrava o quadro uma fala do presidente Jair Bolsonaro de dezembro, quando ele afirmou ter demitido diretores do Iphan depois que a instituição interditou uma obra do empresário Luciano Hang, dono das lojas Havan e um de seus principais apoiadores.
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Membros do conselho consultivo do Iphan, que já vinham demonstrando preocupação, agora assinaram um manifesto afirmando que o governo Bolsonaro promove perseguição e desmonte no órgão. "A declaração [de Bolsonaro] é eloquente sobre o modo como o governo vem utilizando instituições de Estado para favorecer interesses pessoais ou privados", escreveram na carta endereçada há poucos dias à presidente do Iphan, Larissa Peixoto.
Também em reação à crise foi criado o Fórum de Entidades em Defesa do Patrimônio Brasileiro, em 2019, reunindo entidades de geógrafos, arquitetos, arqueólogos e outros em defesa do Iphan.
"Bolsonaro tinha um discurso de que ia acabar com o loteamento político, que era a coisa técnica. O que ele mais faz é o loteamento político-ideológico, inclusive desrespeitando setores que tradicionalmente são respeitados. E não é da época da Nova República, é desde Getúlio Vargas", afirma o arquiteto e professor Marcos Olender, coordenador do fórum.
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Segundo ele, esta é a primeira vez que não há alguém com a qualificação necessária à frente da instituição. A falta de competência, aliás, é algo que ele avalia que se alastra para outras instituições ligadas ao ministério, como a Fundação Cultural Palmares, também importante na construção de uma política de preservação de patrimônio.
Os documentos que a organização tem publicado mostram como os ataques ao Iphan são sistemáticos. "A ditadura militar, é claro, teve sua pressão e influência dentro do órgão, mas nunca a ponto de desqualificar o trabalho técnico do órgão. Isso é algo inédito", acrescenta Olender.
Questionado sobre a última declaração de Jair Bolsonaro e sobre as demissões no Iphan em benefício de Hang, o órgão não se manifestou até a publicação desta reportagem.
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A face pública mais conhecida dessa crise é a do licenciamento ambiental, devido a imbróglios recentes com duas lojas Havan. O licenciamento corresponde a um processo de identificação de possíveis impactos ao patrimônio cultural e a sítios arqueológicos durante o planejamento e construção de uma obra.
Em julho do ano passado, o Iphan anunciou o lançamento de um sistema automatizado para que empreendedores façam a declaração com informações dos locais onde pretendem instalar seus empreendimentos.
O chefe do setor de licenciamento ambiental do Iphan, Roberto Stanchi, estimou que a ferramenta automatizaria de 70% a 75% dos processos de licenciamento. Um servidor que não quis se identificar, contudo, afirma que o banco de dados do Iphan tem só 65% dos sítios arqueológicos conhecidos catalogados, o que gera uma defasagem de milhares de registros, comprometendo a credibilidade do sistema.
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Essa ferramenta, chamada de Saip, ou Sistema de Avaliação de Impacto ao Patrimônio, checa as informações contra um banco de dados de sítios arqueológicos do Iphan para eliminar a possibilidade de que a obra ocorra numa área protegida. No dia do lançamento do Saip, o ministro do Turismo, Gilson Machado Neto, elogiou a agilidade do sistema, afirmando que um processo de licenciamento no Iphan passaria a demorar "apenas 30 horas" -o prazo anterior era de 15 dias.
"A autodeclaração prevista no novo projeto seria uma carta-branca para a destruição ambiental e patrimonial", disse o Fórum de Entidades em Defesa do Patrimônio Brasileiro. Segundo o fórum, o sistema tira a presença humana de algo que não pode ser automatizado.
O Iphan rebate, afirmando que a autodeclaração está em funcionamento desde 2015, sendo defendida e elogiada por entidades da área do patrimônio e meio ambiente. "Com o desenvolvimento do Saip não se está alterando nenhum princípio ou regramento, mas apenas automatizando um dos muitos procedimentos", afirma o órgão, via assessoria de imprensa, acrescentando que o Saip foi criado por cerca de 50 servidores de carreira.
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O Iphan diz ainda que, numa faixa territorial sem sítios arqueológicos cadastrados, seja por desconhecimento ou desatualização do cadastro, o sistema solicita estudos de impacto dos empreendimentos, assim como é feito atualmente nos locais onde são construídas estradas e hidrelétricas.
A implantação do Saip se deu em meio a polêmicas sobre o achado de cerâmicas históricas no canteiro de obras de uma loja da Havan em Rio Grande, no Rio Grande do Sul, fato que levou a própria Havan a paralisar temporariamente a construção, de acordo com o Iphan.
O presidente Jair Bolsonaro primeiro ironizou que, para preservar um "cocozinho petrificado de índio", o órgão teria travado o empreendimento de Luciano Hang, e depois usou o termo "caco de cerâmica" para se referir ao material, que foi resgatado e preservado. Bolsonaro também disse ter demitido diretores do Iphan pelo embargo à obra. A loja foi concluída e inaugurada em julho do ano passado.
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Há alguns dias, o Ministério Público Federal, o MPF, abriu inquérito para averiguar a atuação do Iphan na autorização de outro projeto de loja da Havan, desta vez no centro histórico de Blumenau, em Santa Catarina.
O MPF aponta as características arquitetônicas do empreendimento, que destoam do ambiente urbanístico do entorno, podendo impactar dois bens tombados na cidade, a Igreja Luterana do Espírito Santo e o Museu da Família Colonial. As lojas da Havan simulam a fachada da Casa Branca e tem uma réplica da estátua da Liberdade na entrada.
O Iphan vem também há meses recebendo críticas por nomear servidores sem experiência na área para assumirem cargos de chefia, um loteamento que tem expulsado da instituição funcionários com décadas de casa e histórico comprovado.
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Foram mais de dez nomeações no governo Bolsonaro até agora, como a da presidente, Larissa Peixoto, que fez carreira no setor de turismo e tem vínculo de amizade com a família Bolsonaro, do diretor do Departamento de Cooperação e Fomento, pastor Tassyos Licurgo, e até mesmo a de um bacharel em educação física, atual superintendente da divisão regional de Rondônia, Augusto Celso Figueiredo da Silva.
O Iphan afirma que os casos mencionados são cargos comissionados de livre nomeação pela administração pública, e que tanto Peixoto quanto o superintendente de Goiás tiveram suas nomeações aprovadas pela Justiça. Não respondeu sobre a crítica de que o órgão vem admitindo servidores sem experiência na área, um requisito previsto por lei.
A presidente do instituto chegou a ser afastada temporariamente pela Justiça depois que Bolsonaro falou que demitiu diretores do órgão, em dezembro do ano passado, mas a liminar determinando seu afastamento foi suspensa.
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Outra das crises a atingir o órgão é a diminuição progressiva de seu orçamento nos últimos anos. De acordo com dados do Portal da Transparência da Controladoria Geral da União, o orçamento de 2021 foi de R$ 345,7 milhões, em comparação a R$ 366,3 milhões em 2020. Em 2019, a verba era bem maior, de R$ 516,9 milhões, e em 2018 foi de R$ 486 milhões.
O Iphan afirma que o Executivo Federal tem sofrido com os cortes orçamentários como efeito da pandemia de Covid-19, "que impactou na arrecadação do governo federal", e diz ainda que tem buscado soluções para minimizar os impactos das restrições de verba. O órgão dá como exemplo a mudança de sua sede em Brasília, em curso agora, de um prédio alugado para um local próprio –a economia será de R$ 8 milhões por ano, segundo o Iphan.
Outra crise sem solução à vista é a paralisação do mestrado profissional do Centro Regional de Formação em Gestão do Patrimônio, o Centro Lucio Costa. O edital de 2021 do curso, que tem vagas tanto para bolsistas quanto para servidores do Iphan, não foi lançado. Pela primeira vez desde 2012, quando foi reconhecido pelo Ministério da Educação, o mestrado não terá nova turma.
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De novo, esta é uma paralisação inédita, por falta de aprovação do edital pela diretoria colegiada, formada pelos diretores do Iphan e pela presidente da instituição.
Essa é outra das preocupações que o conselho consultivo do Iphan elenca na carta recém-enviada à presidência. Depois que a agenda de encontros desta que é a última instância de decisões do Iphan foi retomada, os conselheiros também têm usado a reunião para expressar preocupações com a gestão atual, mas sem receber respostas concretas da diretoria.
Márcia Sant'anna, professora da Faculdade da Arquitetura da Universidade Federal da Bahia e conselheira, disse na última reunião do ano passado que o mestrado profissional "é uma das experiências mais bem-sucedidas do Iphan", já com 17 anos. Isso porque, ainda em 2004, foi implantado o Programa de Especialização em Patrimônio, conhecido como PEP, que deu origem ao mestrado.
Sant'anna reforçou a importância do curso para a salvaguarda do patrimônio cultural brasileiro e que ele tem uma absorção de alunos pelo mercado muito acima da média de outras formações em patrimônio. Ela ressaltou ainda que a paralisação impede que a coordenação do curso dê algum tipo de posicionamento a mais de 90 solicitações feitas pelo Brasil todo para ingresso no curso.
Em resposta à fala de Sant'anna, a presidente do Iphan afirmou na reunião que a formação do mestrado é essencial e que "o banco de mestres hoje é o grande banco de currículos" do Iphan. Apesar desse reconhecimento, Peixoto não deu uma previsão de quando o edital deve ser lançado.
"O conselho vem se reunindo, mas vejam que nada mais aconteceu", afirma Inês Martina Lersch, à frente do fórum do patrimônio. "Não teve política pública, não teve financiamento, não teve programa, está tudo estagnado. O nosso receio é o que mais eles vão desmanchar até outubro de 2022."
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