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Escultura: interrogação. Autor: Francisco Leopoldo e Silva. A obra fica no Cemitério da Consolação, no túmulo de Moacyr Toledo Piza. | Foto: página do cemitério da Consolação.
Em 25 de outubro de 1923, um crime repleto de mistério estremeceu o coração de São Paulo. Já eram quase 19h quando uma jovem de 26 anos, filha de imigrantes italianos e conhecida cortesã na cidade, adentrou um táxi na rua Timbiras.
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Ela não estava sozinha; tinha a companhia de um homem de 32 anos, advogado, jornalista e escritor, membro de uma renomada família paulistana.
O casal pediu ao motorista que fizesse um passeio pelo centro antes de seguir para o bairro de Higienópolis. No entanto, ao passarem pela rua Sergipe, perto da praça Buenos Aires, um som de disparo cortou o silêncio da noite: a mulher foi atingida por três tiros, e o homem, por um no peito.
As motivações do crime causam debates até hoje, oscilando entre alegações de feminicídio e teorias de um assassinato planejado para silenciar segredos.
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Intriga, ciúmes, e disputas amorosas entre políticos e elite se entrelaçam nessa história, fazendo deste caso um dos mais enigmáticos da época.
Romilda Macchiaverni, mais conhecida pelo nome artístico de Dona Nenê Romano, era uma figura controversa e fascinante da São Paulo antiga.
Nascida na cidade, filha de um imigrante italiano e de uma brasileira, foi erroneamente rotulada como italiana pelos jornais da época.
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A escritora Edilene Neves, em seu livro 'Quem se Importa', desvendou a verdadeira origem de Romilda após meticulosa pesquisa nos cartórios paulistanos.
Desde os 17 anos, Nenê Romano se envolveu com a prostituição, tornando-se rapidamente a mulher mais cobiçada e invejada da cidade.
Dona Nenê frequentava os locais mais exclusivos: o restaurante Trianon, desfiles de automóveis, o Hotel Esplanada, e o Teatro Municipal.
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Estava sempre presente nas listas de festas importantes, mantendo uma agenda repleta de eventos, clientes e amantes influentes, incluindo empresários, políticos e artistas que proporcionavam uma vida de luxos, presentes e joias.
Num desses eventos, um incidente ocorreu quando um político prometido em um casamento arranjado com uma das filhas dos barões do café enviou um bilhete a Nenê. Esse gesto, embora parecesse inofensivo para ele, trouxe graves consequências para ela.
O destino de Dona Nenê Romano se cruzou então com Iria Junqueira, apelidada de 'Coronel de saias', uma fazendeira que não tolerava desvios e era temida por sua reputação de fazer desaparecer aqueles que desafiavam sua família.
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Esse encontro marcaria o início de uma cadeia de eventos que entrelaçaria o destino de Nenê com mistérios e intrigas da alta sociedade paulistana.
Poucos meses após o controverso incidente com o bilhete, um episódio violento marcou ainda mais profundamente a vida de Dona Nenê Romano.
Enquanto retornava para sua residência na Rua São Bento número 3, em Vila Buarque, próxima ao elegante palacete dos Rego Freitas e ao Largo do Arouche, Nenê foi brutalmente atacada por três homens desconhecidos.
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Um deles, armado com uma navalha, saltou em sua direção com a intenção clara de mutilá-la. O golpe, destinado a desfigurar seu rosto, acabou atingindo seu pescoço.
A crueldade desse ataque refletia uma prática bárbara da época escravagista, quando fazendeiros desfiguravam as escravas que despertavam interesse indevido, perpetuando a noção de que, independente dos atos dos homens, a culpa recaía sempre sobre as mulheres.
Moacyr Toledo Piza, homem que estava junto com Nenê e também foi assassinado, se destacava como uma figura brilhante no cenário jurídico e literário de São Paulo.
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Advogado, jornalista e escritor, ele era descendente de uma família tradicional, cujos antepassados haviam chegado ao Brasil ainda nos tempos da monarquia.
Formado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco em 1915, Moacyr também serviu como delegado de polícia em diversas cidades do interior paulista antes de se estabelecer definitivamente na capital.
Lá, ele abriu sua própria banca de advocacia, consolidando sua reputação como um profissional respeitado e um intelectual influente.
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Uma reviravolta dramática surgiu alguns meses depois do ataque a navalha a Dona Nenê Romano.
Um criminoso foi preso por um delito separado na cidade de Cravinhos, no interior de São Paulo, e durante o interrogatório, confessou sua participação em um crime na capital a mando de Dona Iria Junqueira.
Com essa confissão, o caso foi reaberto. Nesse ínterim, Dona Nenê Romano decidiu buscar justiça e reparação pelos danos sofridos.
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Foi durante esse turbulento processo judicial que os caminhos de Dona Nenê Romano e Moacyr Toledo Piza se cruzaram pela primeira vez.
Moacyr, já estabelecido como um advogado de defesa brilhante, assumiu a representação da família Junqueira no caso da Navalhada da Rua São Bento.
Sua habilidade em navegar pelas complexas águas do direito e sua eloquência no tribunal trouxeram uma nova dimensão ao já intrincado caso.
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Apesar de perder o caso, Nenê Romano não saiu de mãos vazias. Durante o processo, ela se apaixonou por Moacyr Toledo Piza, o advogado da família Junqueira, que também se encantou por ela.
O relacionamento evoluiu para um romance intenso, repleto de ciúmes, discussões e separações turbulentas
. O ponto de ruptura veio quando Moacyr publicou o livro 'Roupa Suja', inspirado na obra homônima do poeta francês Jacques D'Avray.
Este livro, que satirizava figuras políticas e insinuava que o financiador de Nenê Romano poderia ser o próprio presidente do Estado de São Paulo, Washington Luís.
Seria o livro fruto de ciúmes ou uma estratégia de Moacyr para extrair segredos da elite paulistana através de Nenê?
Cem anos depois, o mistério permanece. Moacyr, um jornalista influente da época, especializado em política e nos círculos de poder da Belle Époque paulistana, pode ter se aproximado de Nenê como uma fonte de informações privilegiadas.
As especulações sobre o duplo assassinato giram em torno da possibilidade de uma queima de arquivo, adicionando uma camada ainda mais sombria à história.
A estátua da mulher com uma interrogação no túmulo de Moacyr Piza é um símbolo enigmático que ainda hoje levanta mais dúvidas do que respostas sobre os verdadeiros motivos e as conexões ocultas por trás desses eventos.
O caso de Nenê Romano e Moacyr Piza estava envolto em incertezas e controvérsias. Após o trágico incidente, o chofer do táxi, em vez de dirigir-se ao hospital mais próximo, a Santa Casa, que ficava praticamente ao lado do local do crime, optou por levar o casal diretamente ao Pátio do Colégio, onde se localizava a delegacia central da cidade.
Essa escolha inusitada levantou suspeitas e deu origem à versão do chofer de que o episódio teria sido um feminicídio seguido por suicídio, embora ele fosse a única testemunha do caso. A família de Moacyr, entretanto, nunca aceitou essa explicação, rejeitando a ideia de suicídio.
Durante seus breves mas intensos anos de vida, tanto Nenê quanto Moacyr fizeram muitos inimigos. Naquela época, desavenças frequentemente culminavam em balas, navalhadas e duelos de honra.
O relacionamento entre Nenê e Moacyr poderia ser interpretado como uma queima de arquivo?
Nenê, envolvida com vários políticos e conhecendo seus segredos mais sórdidos, representava uma ameaça considerável.
As noites repletas de bebedeiras, música, champagne e fanfarrices de políticos e empresários poderiam ter fornecido a ela informações comprometedoras.
Além disso, sua relação com um jornalista que denunciava os escândalos da elite paulistana — e ainda por cima era amante de uma das cortesãs mais cobiçadas da cidade — adicionava uma camada ainda mais perigosa e intrigante à sua história.
O trágico desfecho do caso de Nenê Romano e Moacyr Toledo Piza foi oficialmente registrado como um assassinato seguido de suicídio.
Na conclusão das autoridades, a culpa recaiu inteiramente sobre Nenê, a vítima, que foi julgada não apenas por sua profissão de cortesã mas também acusada de manipular um advogado com um futuro promissor.
Enquanto Moacyr de Toledo Piza foi postumamente homenageado pela câmara de vereadores e eternizado com uma rua em seu nome no bairro dos Jardins, além de um mausoléu e uma estátua em forma de interrogação no Cemitério da Consolação.
Já Nenê Romano foi sepultada com apenas alguns pertences pessoais e rapidamente esquecida pela sociedade.
O jornal 'Combate' não hesitou em condená-la, descrevendo-a como 'flor da rua e da lama, símbolo da leviandade e perversidade'.
Apesar do veredito oficial, muitas questões permanecem sem resposta.
Fica claro que houve um feminicídio, mas as circunstâncias que rodeiam o caso ainda envolvem mistérios que talvez nunca sejam completamente elucidados.
Resta a pergunta: esse caso está realmente encerrado, ou as verdadeiras histórias por trás dessas figuras complexas e de seus destinos ainda esperam para ser descobertas?
No Cemitério da Consolação, o túmulo de Moacyr Toledo Piza tem uma estátua de uma mulher nua, com uma pose relaxada e voltada para o joelho.
Feita de mármore branco, a estátua contrasta com as outras tumbas ao redor e chama atenção.
A obra, chamada "Interrogação" e criada por Francisco Leopoldo e Silva, simboliza a mistura de vida e morte.
Quadra 83 terrenos 12 e 13
Cemitério da Consolação
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