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Cotidiano

Romper o modelo urbano de ocupação do litoral é essencial para minimizar novas tragédias

Artigo: Para Nabil Bonduki, a capacidade de suporte urbano de diversas áreas do litoral norte paulista precisa ser avaliada

Bruno Hoffmann

24/02/2023 às 21:26  atualizado em 24/02/2023 às 21:48

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São Sebastião em estado de calamidade pública

São Sebastião em estado de calamidade pública | Divulgação/Defesa Civil de São Sebastião

Sem uma nova política urbana nas áreas turísticas, especialmente em áreas costeiras próximas às regiões metropolitanas, tragédias como as que ocorreram no Litoral Norte de São Paulo se repetirão com maior frequência. 

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Os efeitos de um plano nacional de adaptação às mudanças climáticas, no âmbito do ainda tímido esforço global para reduzir as emissões de GEE, apenas gerará efeitos a longo prazo. Enquanto isso, eventos extremos continuarão a ocorrer, exigindo ações inovadoras nas cidades para evitar que a tragédias sejam cada vez maiores.   

Não basta repetir a necessidade de fiscalizar a ocupação irregular do solo ou anunciar a construção de mais moradias, como afirmaram as autoridades no histórico reencontro da articulação federativa que ocorreu em São Sebastião. Isso é obvio, mas insuficiente.         

Em cada região e bioma, a adaptação das cidades à emergência climática exige estratégias diferentes, que levem em conta o meio físico, a estrutura urbana e a base econômica. Nesse litoral, é necessário tratar da questão fundiária, vinculada ao modelo turístico que gera uma insustentável ocupação da costa. 

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O litoral norte é uma frágil e estreita faixa de terra espremida entre as praias, sujeita a elevação do nível do mar e a fortes ressacas, e a Serra do Mar, com a sensível cobertura da Mata Atlântica, sujeita à erosão e ao deslizamento, sobretudo quando desmatada.  

A capacidade de suporte urbano dessa preciosa área precisa ser avaliada, restringindo-se o crescimento ilimitado do turismo e compatibilizando-o com a necessidades de habitação social. 

Por séculos, o ecossistema esteve em equilíbrio com a ocupação humana, restrita à faixa costeira, onde indígenas e caiçaras se dedicavam à pesca e à roça, se deslocando por trilhas e pelo mar. A precária estrada de terra aberta pela Petrobrás em 1962, iniciou o turismo mas não alterou substancialmente a situação.  

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A abertura da rodovia litorânea, da Mogi-Bertioga e da conexão com o Sistema Anchieta Imigrantes (anos 1980) transformou a região em objeto de desejo da classe média e alta paulistana. A faixa junto às praias, adequada a urbanização, sofreu forte processo especulativo e o valor da terra explodiu com a dinâmica imobiliária.  

Os caiçaras, atraídos por ofertas aparentemente vantajosas, venderam suas posses e se alojaram em áreas mais distantes, seguidos por migrantes que foram atraídos pelas novas atividades econômicas. Gerou-se um nítido processo de segregação espacial.  

Sem alternativas em áreas adequadas, apropriadas pelos resorts, pousadas e as casas de veraneio (vazias a maior parte do ano), os trabalhadores ocuparam as encostas dos morros, em áreas de risco, como a Vila do Sahy, onde ocorreu a maioria das mortes. 

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O enfrentamento da questão exige mais do que a anunciada construção de moradias. É necessário mudar esse modelo e romper a forma desigual como a terra é apropriada.  

Conjuntos habitacionais devem ser localizados em áreas apropriados à urbanização, ou seja, nas áreas planas, mais valorizadas, onde estão as oportunidades de trabalho. São Sebastião tem 70 km de litoral e as moradias precisam estar próximos às suas 29 praias.  

Não é suficiente construir moradias concentradas em algumas poucas áreas, como na sede do município. Eles seriam inadequados para os trabalhadores, por exemplo, da Barra do Sahy, que fica a 47 km. Sem alternativas no próprio local onde trabalham, as pessoas continuarão a ocupar áreas de risco.  

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Além de novas moradias, a prevenção ao risco requer um vigoroso programa de assistência técnica gratuita para melhoria habitacional, para garantir segurança construtiva.  

Soluções para obtenção de terras requer enfrentar interesses fundiários, imobiliários e clientelísticos. 

Grande parte das terras litorâneas, inclusive as ocupadas por empreendimentos, pertencem à União, e a posse não está totalmente regularizada. A Secretaria do Patrimônio da União poderia retomar terrenos ou gerar receita com a regularização das ocupações para a produção de moradias em locais adequados.  

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Os municípios poderiam adotar a Cota de Solidariedade (regulamentada no Plano Diretor de São Paulo). No caso do litoral, o instrumento exigiria que os empreendimentos turísticos reservassem parte da área construída para habitação social. Moradias que ficam vazias a maior parte do ano deveriam ser sobretaxadas.  

Os eventos extremos ocorrerão com mais frequência e esses desastres exigem ações não convencionais. Se o modelo atual de ocupação do litoral for mantido, os desastres se repetirão. Não se irá adaptar as cidades à emergência climática sem quebrar alguns ovos.

*Nabil Bonduki é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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