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Morta em janeiro, Elza Soares entrega show no Municipal como último ato de sua trajetória

Elza morreu em 20 de janeiro, aos 91 anos, míseros dois dias depois de se derramar pelo Municipal, onde gravou um disco, lançado nesta sexta-feira

Natália Brito

13/05/2022 às 11:19  atualizado em 13/05/2022 às 11:23

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Elza Soares

Elza Soares | Divulgação

"Vou me derramar nesse palco de uma maneira que ninguém vai me tirar dos veios da madeira", foi o que Pedro Loureiro, empresário de Elza Soares nos últimos sete anos, ouviu da cantora. A frase, sobre a arquitetura do Theatro Municipal de São Paulo, foi dita em 2020, quando eles planejavam a gravação de um show da artista conhecida como a voz do milênio.

Àquela altura, uma gravação no espaço nobre –onde, ela dizia às pessoas próximas, nunca foi bem vinda– ainda não estava nos planos. "Ela falou 'vai ter Elza entranhada nesse palco inteiro'", diz Loureiro, antes de soltar uma frase muito repetida por quem estava ao redor da cantora. "Essa mulher já sabia."

Elza morreu em 20 de janeiro, aos 91 anos, míseros dois dias depois de se derramar pelo Municipal, onde gravou um disco, lançado nesta sexta-feira, e um filme ao vivo revendo uma carreira tão longa quanto importante para a cultura brasileira. Foi o último ato de uma trajetória inspiradora, cheia de percalços, que chegou ao fim com uma redenção que, de tão singela, parece ter sido orquestrada pela artista.

O processo que culminou na gravação no Municipal vem de 2015, quando Elza mais uma vez saiu do ostracismo para a aclamação, com o disco "A Mulher do Fim do Mundo", um estrondoso álbum de inéditas. A partir dali, Loureiro assumiu o posto de empresário e desenvolveu uma relação "de pai e de filho" com a cantora.

Depois de anos com agenda curta e lançamentos raros, Elza queria fazer tantos shows quanto seu corpo aguentasse e passou seus últimos anos frequentando assiduamente o estúdio da gravadora Deck, no Rio de Janeiro. "No fim de 2021, ela estava incrível. Antes, vinha às 16h e ia embora às 20h, mas ali em novembro ela estava um monstro. Houve sessões que duraram até 1h da manhã. Ela estava muito feliz, sabendo o que queria cantar", diz Rafael Ramos, produtor de "Planeta Fome" e de "Ao Vivo no Municipal".

Ele lembra que houve fases em que ela parecia mais cansada, se limitava a entrar no estúdio e cantar, mas nos últimos meses tinha disposição inabalável. Elza não era de fazer muitos takes, os quais ouvia e escolhia cuidadosamente, mas estudava cada canção antes de pisar no estúdio. "Ela gostava de chegar preparada, mas gravava sempre como se estivesse tirando onda."

Elza já não tinha a mesma vontade para cantar músicas que estiveram em seu repertório durante toda a carreira, como "Se Acaso Você Chegasse", de 1959, mas tinha algumas favoritas, como "Comportamento Geral", de Gonzaguinha. Pedia espaços instrumentais nas músicas para "brincar" com sua voz, quis gravar "Meu Guri" em voz e um piano tocado por uma pessoa negra, demorou para relembrar "Dura na Queda", música que Chico Buarque compôs para ela há 20 anos.

Dizia que cantar era seu maior remédio, mas, mesmo nos momentos mais emotivos, não gostava de ser vista como vulnerável. "Você sentia ela saudosista, mas ela não chegava a se emocionar. Era forte demais. Quando estava cantando ou falando de assuntos delicados, você sentia a dor, mas ela não chorava na sua frente."

O repertório do álbum e do filme ao vivo reúne momentos de toda a carreira, escolhidos a dedo pela cantora, que se conectava com as músicas por meio de memórias –o primeiro show em que cantou determinada canção, o compositor, algum acontecimento de sua vida. Elza ainda não tinha um registro ao vivo que abrangesse toda a sua carreira, e deixar essa obra pronta havia se tornado seu último grande desejo e obsessão.

Nos últimos anos, ela queria estar no palco sempre que possível, e desafiava os limites do próprio corpo, já castigado com problemas antigos na coluna e nas clavículas e as dores nos pés, que limitavam seus movimentos.

"Quando era a Conceição [seu sobrenome], a gente via uma senhorinha pequena, frágil. Mas quando começava a se maquiar, se transformava num monstro. Parecia que tinha dois metros de altura. A voz, o olhar, tudo dela mudava muito. Mas a gente tinha que entender que era um corpo de 91 anos", diz Vanessa Soares, neta da cantora, que também cuidava de sua carreira e morou com ela nos cinco meses anteriores à sua morte.

Eram Vanessa e Loureiro quem freavam o ímpeto de Elza, que gravou no Municipal por dois dias em sessões intensas que não a impediram de, ao fim das gravações, querer jogar seu tradicional buraco, o jogo de cartas, pós-show. "Ela não gostava de tomar café no hotel, mas nas últimas viagens ela queria descer, ficar batendo papo. Parece que minha avó estava preparando o terreno para se despedir."

"Ao Vivo no Municipal", financiado pela da Lei Rouanet, deveria ter sido gravado há dois anos, mas foi sendo adiado pela pandemia. Durante as gravações, Loureiro conta que ela estava se sentindo como uma criança no recreio.

"Dançava com os ombros, estava feliz, rindo, despreocupada. Ela era sempre preocupada com o resultado final, o penteado, o figurino, os timbres. Mas, dessa vez, estava livre, confiante. Achávamos que seria uma tendência para os próximos anos. Mal sabia eu que ela sabia que estava fazendo seu último trabalho."

Nos últimos anos, Elza criou uma relação especial com fãs, como Paulo Moura, dono de seu fã clube oficial, com teve uma convivência íntima, em que ele passava semanas ou meses na casa da cantora, em Copacabana. Ela fazia questão que ele se hospedasse por lá quando fosse ao Rio.

Moura lembra que eles conversavam por horas e, como é sociólogo, o assunto várias vezes acabava em política. "Lembro dela muito indignada, deitada na cama, perguntando 'cadê a juventude, meu Deus?', com aquelas expressões que só ela tinha. 'Como pode não ir à rua? Como pode deixar isso acontecer?', isso se referindo ao governo atual. Ela sentia uma letargia."

Ele conta que Elza não gostava de ouvir as próprias músicas, mas era fanática pelo cantor mexicano Luis Miguel –e brincava que tinha uma queda por ele. Relacionava a música "Drão", de Gilberto Gil, ao filho Garrinchinha, que morreu em um acidente de carro em 1986. Também reivindicava as cores e a camisa do Brasil, que para ela haviam sido sequestradas, e costumava verbalizar com frequência seu amor pelo país.

Moura foi um dos poucos convidados –a maioria, por exigência de Elza, negros e gente que nunca havia pisado no Municipal– a assistir a uma das três partes do filme. Ele conseguiu reencontrar a amiga depois de dois anos falando com ela apenas pelo telefone. "Comecei a chorar e a tremer muito. É a pessoa que transformou a minha vida, passei meus últimos anos buscando essa mulher. E era o DVD que ela tanto sonhava. Muita coisa aconteceu, fechou-se um ciclo. Ela até foi homenageada no desfile da Mocidade Independente de Padre Miguel. É como se falasse, 'já fiz, tô indo'."

Elza tinha um senso de humor peculiar e costumava brincar com todos ao seu redor. Na véspera de sua morte, usou a camisa do Flamengo, de que era torcedora, e sua cuidadora, a botafoguense Mônica, brincou que iria jogar água sanitária no uniforme. "Ela riu, olhou para mim e falou, 'Vanessa, diz pra ela quem é que faz o pagamento dela'", diz a neta.

No ano passado, também contou sobre sua intensa e complicada relação com Garrincha para o documentário "Elza & Mané", do Globoplay. Era um assunto do qual ela não falava com ninguém. "Eu era muito nova, mas minha avó não deixava a gente ver nada. Só vim saber de cenas chocantes vendo o documentário." Mas, diz a neta, Elza foi embora em paz com o passado. "Por mais apedrejada que ela tenha sido, ela estava tranquilo. Dizia 'deixa para lá' e acabou. Preferia apagar as lembranças para não sofrer."

Nos últimos meses, Elza ficou na casa de Vanessa. Estava feliz com a participação de Linn da Quebrada no Big Brother Brasil, encontrou parentes, distribuiu piadas e costumava assistir aos jogos do Flamengo. Pedia seu prato favorito –uma receita de jiló com ovo que ela ia até a cozinha ensinar a quem estivesse pilotando o fogão. Se sua despedida foi orquestrada como acreditam as pessoas no seu entorno, ela também fez questão de escolher o dia da partida, o mesmo da morte de Garrincha, 39 anos depois.

Elza morreu em sua cama, em casa, após praticamente avisar ao marido da neta que estava deixando este mundo. Mas, dois dias antes, deixou claro que cantaria até o fim.

"Faltavam oito minutos para encerrar as gravações", diz Loureiro. "Estava atrasado, não ia dar para gravar a 'Mulher do Fim do Mundo'. Cheguei na Elza e perguntei, 'meu amor, você vai cantar até o fim?' Ela disse, 'lógico'. Tanto no vídeo quanto no áudio, a última música cantada por Elza Soares em vida foi uma vez valendo. Um take perfeito, em que ela improvisou no final. Ela fala, 'me deixem cantar até o fim' e silencia. Respira fundo e fala 'até o fim'."

ELZA AO VIVO NO MUNICIPAL
Quem: Elza Soares.
Produção: Rafael Ramos.
Gravadora: Deck.
Quando: Esta sexta (13) .
Onde: Nas plataformas de streaming.

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