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Cotidiano

Primeiro ano da Guerra da Ucrânia consolida nova ordem mundial

A invasão, que chega ao seu aniversário de um ano nesta sexta-feira, enterrou de vez a ordem global do pós-Guerra Fria

24/02/2023 às 15:46  atualizado em 24/02/2023 às 15:54

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Os presidentes Volodymyr Zelensky (à esq.) e Joe Biden (à dir.) falam com jornalistas na Casa Branca, em dezembro

Os presidentes Volodymyr Zelensky (à esq.) e Joe Biden (à dir.) falam com jornalistas na Casa Branca, em dezembro | Reprodução/Youtube/The White House

Um ano após os primeiros mísseis russos atingirem a Ucrânia, o mundo passa por uma transformação geopolítica tão incerta quanto o desfecho do maior conflito na Europa desde o fim da Segunda Guerra. 

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A invasão, que chega ao seu aniversário de um ano nesta sexta-feira (24), enterrou de vez a ordem global do pós-Guerra Fria, que assistiu à hegemonia ocidental liderada pelos EUA. Esse cenário figura em qualquer discurso do presidente russo, Vladimir Putin, mas talvez não da forma como ele pretendia.

O objetivo do Kremlin era refazer as fronteiras neutras ou vassalas em torno do país, retomando a visão imperial e soviética de Moscou. Militarmente, fracassou no ímpeto inicial, mas ainda pode colher uma vitória parcial para se dizer triunfante, caso a guerra termine com perdas territoriais para a Ucrânia.

Num esforço não tão secundário, pretendia desmoralizar o que vê como arrogância ocidental, após anos de expansão da Otan e da União Europeia rumo à antiga área de influência russa.
Aqui, o fracasso de Putin é mais claro: o Ocidente está mais unido do que nunca, algo aferível numa nova pesquisa do Conselho Europeu de Relações Exteriores, que ouviu quase 20 mil pessoas nos EUA, na Rússia, no Reino Unido, na China, na Índia e num bloco de nove países europeus em dezembro e janeiro.

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Visões ocidentais convergem. Concordam que a guerra tem de continuar até a desocupação dos 20% da Ucrânia ora com soldados russos 44% dos britânicos, 38% dos europeus e 34% dos americanos. Veem a Rússia como adversária 65% no Reino Unido, 55% nos EUA e 54% no grupo da Europa.

A má notícia para defensores de uma Europa mais independente, como o francês Emmanuel Macron ou o alemão Olaf Scholz, é a percepção de que EUA e UE pensam igual: 72% dos turcos veem isso, por exemplo.

Talvez porque a guerra agora seja nas suas fronteiras, os europeus se submeteram ao domínio americano, ainda que protelando sempre que possível decisões difíceis, em especial no apoio militar a Kiev. Assim, 75% dos US$ 62 bilhões (R$ 317 bilhões) em armas enviados aos ucranianos partiram de Washington.

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Tão importante quanto o fracasso de dividir o Ocidente, visível também no pedido de acesso à Otan das neutras Suécia e Finlândia, é a emergência de polos alternativos de poder que a Guerra Fria 2.0 entre EUA e China não parecia antever. No estudo do centro europeu, 54% dos indianos, 48% dos turcos, 44% dos russos e 42% dos chineses querem o fim das hostilidades mesmo com perda territorial para Kiev. Se no caso dos russos isso parece óbvio, chama a atenção os números de outros líderes do chamado Sul Global.

Curiosamente, há um descolamento da China, que viu seu embate com os EUA crescer neste ano. Afinal de contas, Xi Jinping é o maior aliado de Putin, e os países dão demonstrações seguidas de união contra o Ocidente, ainda que o apoio chinês seja bastante ambíguo, de acordo com seus interesses.

Por essa lógica, o conflito europeu se insere na Guerra Fria 2.0, tanto que o americano Joe Biden advertiu Xi a não se animar a fazer de Taiwan uma Ucrânia. O dirigente chinês deu de ombros, até porque os casos são díspares, mas certamente prestou atenção às dificuldades militares do parceiro.

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Ocorre que a realidade talvez não seja bem essa. A Índia, por exemplo, é uma crítica da invasão russa, mas trata Putin como aliado na sua busca de se contrapor a Pequim como potência asiática dominante.

Não menos importantes, os dois países mais populosos do mundo travaram escaramuças fronteiriças graves nos últimos anos, e os indianos aumentaram sua integração ao Quad, grupo com EUA, Japão e Austrália que visa conter a China. Com efeito, 39% dos indianos ouvidos no estudo veem os chineses como adversários, e 37%, como rivais, o maior grau de animosidade captado no levantamento.

Nova Déli navega numa agenda própria. Absteve-se de condenar a invasão russa na ONU, mas o premiê Narendra Modi pediu o fim da guerra a Putin. Ao mesmo tempo, aumentou em 14 vezes o volume de petróleo que compra, com desconto, de russos atrás de novos mercados, já que a galinha dos ovos de ouro da dependência energética europeia de Moscou foi sacrificada no altar da invasão.

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Assim, ao lado dos chineses, que aumentaram em quase 50% a importação dos russos, viraram os principais atores da sobrevivência externa da economia russa, submetida a um regime nunca antes visto de sanções econômicas lideradas pelo Ocidente.

No Oriente Médio, sobram novos negócios para a Rússia, a começar pela renovada aliança no campo energético com a Arábia Saudita, de resto um regime próximo do Ocidente também. Países árabes e africanos, no geral, mantiveram boa relação com Putin, e a conexão com o beligerante Irã subiu a um novo patamar militar, com os drones de Teerã se espatifando sobre ucranianos.

A arbitrariedade da aplicação das sanções assusta países mundo afora, a começar pelo Brasil, que votou com as 141 nações que condenaram a guerra. Mas da polêmica visita de Jair Bolsonaro (PL) a Putin na semana anterior à invasão à negativa de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em fornecer munição para Kiev neste ano, a posição brasileira segue a tradição da diplomacia do país: neutralidade.

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O motivo mais imediato é mais comezinho do que as pretensões de potência de Modi, a necessidade de manter fertilizantes russos para o agronegócio, ainda que haja pretensões megalômanas de mediação. Mas a razão subjacente é a negativa a um mundo em que você pode ser desconectado caso desagrade um clube de países ricos, uma visão corrente na Rússia. Como disse Macron na Conferência de Segurança de Munique, no final de semana passado, o Sul Global está desconfiado do Ocidente.

O estudo europeu, liderado pelo historiador britânico Timothy Garton Ash, faz leitura semelhante. "O Ocidente fará bem se tratar Índia, Turquia, Brasil e outras potências comparáveis como novos sujeitos soberanos, em vez de objetos a serem forçados ao lado certo da história", diz seu relatório.

Diferentemente da Guerra Fria, em que havia um bloco de não alinhados a EUA ou União Soviética, "esses países não comungam da mesma ideologia e em geral têm interesses divergentes ou concorrentes". "Mas eles certamente não estarão contentes em se ajustar aos caprichos e planos das superpotências", afirma.

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Como toda pesquisa, trata-se de uma fotografia. Muito depende do destino militar da guerra, hoje em uma ofensiva russa no leste ucraniano que pode acabar num golpe definitivo para controlar as áreas anexadas ilegalmente por Putin ou em um exercício de desperdício de vida humana em nome de vaidade política.

Mesmo com o renovado apoio ocidental, nem mesmo os EUA veem a Ucrânia em condições de retomar o que perdeu agora, para não falar na Crimeia anexada em 2014, na gênese da crise que levou à guerra quando o governo pró-russo de Kiev foi derrubado e Putin se mexeu para não ver o Ocidente por perto.

Até aqui, a Rússia sobrevive às sanções, e 2022 viu uma queda do PIB de 2,1%, bem menos do que o esperado no exterior. Mas há sinais de alerta, como o déficit fiscal recorde do país em janeiro deste ano.

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Se conseguirá manter o fôlego militar, é algo a ver. Há muitas coisas que podem dar errado em termos de escalada da crise, como um entrechoque entre russos e a Otan ou o emprego de armas nucleares por Putin, num hipotético dissolvimento de suas Forças Armadas que arriscaria seu até agora sólido controle da Rússia. Daí para a Terceira Guerra Mundial, que voltou a ser assunto normalizado, é um pulo.

Ninguém sabe se Putin se contentaria com o pedaço que fatiou da Ucrânia, e tanto Volodimir Zelenski como líderes europeus mais alarmados são unânimes em afirmar que uma vitória parcial seria a antessala para agressões futuras. "É óbvio que ele não vai parar", disse o líder ucraniano recentemente.

Na visão de Moscou, o ucraniano quer se transformar num bastião. "Ele está sinceramente convencido de que fará da Ucrânia uma espécie de Israel, um Estado paramilitar com um senso de constante ameaça militar", afirma Andrei Chuchentov, diretor de pesquisas do Clube Valdai, think tank próximo do Kremlin.

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De uma forma ou de outra, isso tudo torna a guerra insolúvel a esta altura, comprovando a previsão feita em reserva por um diplomata que estava em Munique: as coisas ainda vão piorar muito antes de poder melhorar. Enquanto isso, um incógnito mundo vai sendo moldado pela guerra, da nova política energética europeia ao militarismo redivivo no Japão, como é usual na história humana.

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