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Cotidiano

MP de Lula para regular golpismo nas redes levanta divergência sobre Marco Civil

Aprovada no governo Dilma Rousseff (PT) em 2014, a lei criou direitos e deveres para o uso da internet no Brasil

Natália Brito

03/02/2023 às 10:19  atualizado em 03/02/2023 às 10:23

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Marco Civil da Internet.

Marco Civil da Internet. | Divulgação

Uma das divergências sobre a criação de novas regras para que as redes sociais reduzam conteúdos golpistas em suas plataformas é o impacto dessas medidas no que hoje é estipulado pelo Marco Civil da Internet.

Aprovada no governo Dilma Rousseff (PT) em 2014, a lei criou direitos e deveres para o uso da internet no Brasil. O artigo 19, um dos que mais dividiu opiniões, volta ao centro do debate diante da intenção do governo Lula (PT) em regular publicações de redes sociais que se enquadrem em crimes contra o Estado democrático de Direito e terrorismo.

O texto que está sendo debatido pelo governo ainda não foi divulgado, o que impede o detalhamento das medidas. Apesar de o ministro da Justiça, Flávio Dino, afirmar que a medida não mudará o Marco Civil, a depender das obrigações há possibilidade de o regime ser alterado, mesmo que de modo indireto.

Motivado pela crise dos ataques bolsonaristas em 8 de janeiro, Lula pediu uma proposta à pasta de Dino. A redação saiu como MP (medida provisória) e é analisada por outros órgãos antes de ser encaminhada à Casa Civil e ao Congresso.

O artigo 19 isenta as plataformas digitais de responsabilidade civil por danos de conteúdo postado por terceiros. Isso significa que elas só estão sujeitas a, por exemplo, pagar uma indenização, depois de não atenderem a uma ordem judicial de remoção.

Essa regra foi criada para assegurar a liberdade de expressão e combater a censura. A intenção era evitar que as empresas removessem postagens lícitas pelo receio de serem responsabilizadas. Há exceção, entretanto, para nudez não consentida e conteúdos que infrinjam direitos autorais.

Clara Iglesias Keller, líder de pesquisa em tecnologia, poder e dominação no Weizenbaum Institute de Berlim, considera que, sozinho, o regime do Marco Civil é insuficiente para "garantir uma governança democrática de conteúdo em plataformas".

"O artigo 19 sozinho se aproxima muito de uma autorregulação, deixando as plataformas bem confortáveis para moderar de forma opaca", diz.

Ela defende que é preciso lidar com a questão de modo estrutural e que pensar apenas em remoções e nas regras de responsabilidade reforça a influência do poder privado sobre as conversas online.

O texto do MJ é restrito e delega às plataformas um "dever de cuidado" de impedir que se dissemine conteúdo que violem duas leis, a do Estado democrático e de terrorismo, como mostrou a Folha. As big techs seriam responsáveis por remover publicações potencialmente ilegais e seriam multadas em caso de descumprimento generalizado dessa moderação proativa.

Ivar Hartmann, professor do Insper e doutor em direito público, diz que o artigo 19 permitiu proteção contra um poder excessivo das empresas e que o modelo "não está ultrapassado". "Acho que ultrapassado seria pensar que o artigo 19 sozinho dá conta de todos os problemas."

Na sua interpretação, a previsão de uma punição por uma conduta reiterada –de falta de moderação generalizada (como pode propor o governo)– não reverteria o artigo 19, porque ele versa sobre posts específicos (URLs).

Já na avaliação de Francisco Brito Cruz, doutor em direito e diretor-executivo do InternetLab, quanto mais a proposta do governo der às plataformas a responsabilidade por interpretar e moderar conteúdos potencialmente ilegais, sob pena de sanções, mais ela altera o modelo do Marco Civil.

"Quanto maior a margem de interpretação, se determinado conteúdo seria legal ou não, mais chance de a plataforma abusar porque ela vai estar incentivada a retirar."

As empresas, que têm políticas globais com adaptações a diferentes países, não regulam golpismo diretamente, mas incitação a ódio, terrorismo e violência, de modo geral.

Paulo Rená, doutorando em direito na UnB, onde pesquisa regulação de ciência, tecnologia e inovação, diz que, para combater nudez e infração ao direito autoral, as plataformas são eficazes, mas ressalta a dificuldade de moderar atentados ao Estado democrático diante da atual jurisprudência para o tema.

"As redes têm alguma condição de fazer mais do que estão fazendo", diz. "Só que as pessoas estavam com faixas na rua com as mesmas mensagens [de intervenção militar] que disseminavam nas redes e não foram punidas. Tudo bem, mudou o governo, mas é preciso ser proporcional", avalia.

Há quem seja completamente contrário ao artigo 19 e existe uma ação pendente de decisão no Supremo Tribunal Federal que questiona sua constitucionalidade.

A advogada Patrícia Peck, sócia do Peck Advogados e conselheira do Conselho Nacional de Proteção de Dados, é favorável a uma eventual revisão no artigo 19. Argumenta que o cenário é muito diferente de 2014, com maior concentração de mercado e dependência da sociedade das redes sociais.

"Vejo com bons olhos porque a sociedade deu um salto grande, tivemos tempo para avaliar esses efeitos. Defendo a participação ativa das plataformas para solucionar efeitos colaterais trazidos pela própria tecnologia, que talvez não se enxergasse tempos atrás."

Ela refuta, no entanto, uma lei dedicada só para coibir golpismo e critica que o texto saia como uma MP.
A possibilidade de MP é uma das principais críticas de organizações como a Coalização Direitos na Rede e da OAB-SP, diante do tempo de debate que se levou para construir o Marco Civil.

"Normas como o artigo 19 do MCI são responsáveis pela manutenção de um equilíbrio frágil que protege, de um lado, a liberdade de expressão dos usuários de internet e, do outro, a inovação no setor de novas tecnologias", diz a nota da seccional paulista da OAB, que considera a remoção sem ordem judicial prévia "altamente preocupante".

Se o texto sair com a previsão de "dever de cuidado", diferentes especialistas ouvidos também defendem a possível atuação de um órgão regulador independente, que seria composto por um corpo técnico e multissetorial.

Entenda o que está em debate:

O que é a MP das redes sociais?

Sob o impacto dos atos golpistas do 8 de janeiro, o Ministério da Justiça de Lula elaborou uma proposta de medida provisória que cria obrigações às plataformas de redes sociais para remoção de conteúdo ilegal sobre golpismo e terrorismo. Ainda sob análise do governo e sem texto divulgado, ela prevê que o descumprimento generalizado das obrigações geraria multa, conforme mostrou a Folha de S.Paulo.

O que é o Marco Civil da Internet?

O Marco Civil da Internet criou direitos e deveres para o uso da internet no Brasil. O artigo 19 dessa lei isenta as plataformas digitais de responsabilidade civil por danos gerados pelo conteúdo postado por terceiros. Isso significa que elas só estão sujeitas a pagar uma indenização, por exemplo, depois de não atenderem uma ordem judicial de remoção. A constitucionalidade do artigo 19 é questionada em ação pendente de decisão no STF (Supremo Tribunal Federal).

Qual a discussão sobre o artigo 19 dessa lei?

A regra foi aprovada assim com a preocupação de assegurar a liberdade de expressão. Uma das justificativas é que as plataformas não seriam estimuladas a remover conteúdos legítimos com o receio de serem responsabilizadas. Por outro lado, críticos dizem que a regra teria gerado judicialização excessiva, além de não incentivar as empresas e combater conteúdo nocivo.

A proposta do governo impacta o Marco Civil?

O entendimento é que, mesmo que o projeto do governo não altere o Marco Civil diretamente, a criação de obrigações às plataformas relacionadas à remoção de conteúdo ilegal impactaria o modelo atualmente vigente. Isso porque elas estariam sob pena de multas ou outras sanções mesmo sem terem desobedecido determinação de um juiz.

O Marco Civil resolve desinformação?

Apesar de haver discordância sobre o artigo 19 e sobre leis envolvendo remoção de conteúdo, de modo geral, especialistas entendem que o Marco Civil sozinho não lida com problemas como desinformação e extremismo nas redes. Há muita divergência sobre o que fazer. Parte das propostas envolve uma regulação ampla das redes. Há também quem defenda a criação de um órgão regulador para monitorar o cumprimento de novas regras.

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