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Cotidiano
Pelé é a imagem mais poderosa que o Brasil conseguiu produzir ao mundo, mas o Rei também precisou enfrentar uma certa má vontade a vida toda
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Pelé | Adriano Vizoni/Folhapress
Morreu Pelé, um dos inventores do Brasil. Um homem negro do interior de Minas Gerais que se tornou sinônimo de ser brasileiro em nível mundial. A palavra Pelé é reconhecida e admirada no planeta inteiro há mais de 60 anos, seja em Bangladesh, na Costa Rica, na Sérvia ou na Etiópia. Não é pouca coisa.
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Ele também ajudou o seu próprio povo a construir uma identidade vencedora, apesar do complexo de vira-latas que sempre atravancou a nação. Imagine sermos exatamente como somos mas sem cinco Copas do Mundo, sem a sensação de sermos "o país do futebol". Nossa auto-estima, que já não é lá essas coisas, seria inexistente, seria calculada em pontos negativos.
O maior camisa 10 da história conquistou um título mundial com apenas 17 anos, sendo decisivo nas semifinais e finais da Copa de 1958. Conquistou absurdos 10 títulos paulistas pelo Santos em 16 disputados, duas Libertadores e dois mundiais. Fez de um time de fora de capital uma potência aclamada em todos os continentes. Era gênio em quase tudo: drible, arrancada, chute de fora da área, de dentro da área, de briga e até de malandragena maravilhosas para conseguir ter vantagens sobre os rivais.
Ou seja, era muito bom em todos os fundamentos dentro de campo. E no que não era excelente treinava à exaustão. Em entrevista dada a mim, para a revista Almanaque Brasil, em 2009, questionei se ele tinha algum ponto fraco em campo. A resposta: "Ponto fraco, diria que não. Mas era perfeccionista. Gostava de melhorar o cabeceio. Treinava com a bola pendurada numa forca. Cada vez ia apurando a impulsão e o tempo de bola". O resultado pôde ser visto em seu impressionante gol de cabeça na final da Copa do Mundo de 1970, contra a Itália.
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Só que, como troco de ter sido excelente no que se propôs, precisou enfrentar uma certa má vontade dos brasileiros. O povo sempre patrulhou as declarações de Pelé de forma desproporcional. Foi desmoralizado em seu milésimo gol, em 1969, por exemplo, por ter dedicado a marca às crianças pobres. Se Pelé calado é um poeta (como, grosseiramente, disparou Romário em 2005), Pelé falando sempre foi o alvo preferido dos brasileiros.
Diz-se, com razão, que o Brasil sempre teve dificuldades de aceitar com bom grado um negro ascender de forma apoteótica, ainda mais alguém como Pelé, que nunca teve a humildade como uma de suas virtudes (e nem deveria ter) e passou a vida se autoproclamado o melhor de todos. A reação veio forte, e Pelé nunca foi tão habilidoso para driblar os holofotes maldosos sobre si. Exigiu-se dele durante décadas uma nobreza que ninguém é obrigado a ter.
O não reconhecimento da filha, claro, é algo que não dá para defendê-lo, mas a história mostra que ele já sofria de uma antipatia grande desde sempre. "Pelé seria endeusado se fosse branco", disse Mano Brown. Não é improvável que o músico esteja certo.
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Vejamos: Pelé é o maior simbolo do esporte nacional, mas não o único. O astro do tênis Guga Kuerten sempre recebeu os aplausos merecidos, e não fazemos ideia do que ele pensa sobre o racismo no Brasil. Ayrton Senna, um herói para boa parte da população, é lembrado principalmente pelo o que fazia nas pistas. Zico, Rivellino e Kaká são reverenciados apenas como craques de bola, não por posições políticas. O foco sobre todos esses está sobre o que fizeram em suas áreas de atuação, e é bom que tenha sido assim. Com Pelé foi diferente.
Outros como ele também foram alvo tantas vezes por estas terras. A carreira de Wilson Simonal foi destruída por razões semelhantes. Mano Brown já foi acusado de ser hipócrita por andar de carros luxuosos, mesmo sendo um dos artistas de música popular mais importantes do Brasil. Por outro lado, Adriano foi chamado de irresponsável por querer morar na Vila Cruzeiro. A situação parece estar começando a melhorar, mas temos um longo e espinhoso caminho pela frente.
Pelé, com todos os seus defeitos (e se não tivesse defeitos não seria Rei, seria deus), é a imagem mais poderosa que o Brasil produziu e um ícone da cultura pop mundial. Um homem que fez o que fez em campo merece ser visto como sempre foi: o maior de todos. O maior de todos. O maior de todos. "E tudo o que fiz foi com a minha cor", exaltou, em uma entrevista ao UOL em 2017.
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Adeus, Rei, e obrigado por escrever os capítulos mais gloriosos deste país.
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