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Cotidiano
Há 40 anos, a farmacêutica cearense Maria da Penha Maia Fernandes, 78, levou um tiro do então marido
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A apresentadora Ana Hickmann denunciou violência doméstica cometida pelo marido, Alexandre | Reprodução
Em sua primeira entrevista depois de denunciar ser vítima de violência doméstica, a apresentadora Ana Hickmann contou no último domingo (26) que pediu o divórcio de seu marido, que aponta como autor das agressões, Alexandre Correa, por meio da Lei Maria da Penha.
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"Muita gente achou que eu estava quieta porque eu ia voltar atrás. Não. Já dei entrada pela Maria da Penha. A lei tá pra nos proteger. Foi criada por conta de uma mulher que foi vítima disso e tantas outras que também foram vítimas", disse Hickmann, que recebeu também medida protetiva prevista na lei. "A lei, que é cada vez mais forte, me protegeu."
Há 40 anos, a farmacêutica cearense Maria da Penha Maia Fernandes, 78, levou um tiro do então marido, que a deixou paraplégica. À Justiça, ele alegou que o casal foi vítima de um assalto e, 19 anos depois, o caso foi parar na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos), que condenou o Brasil.
A tentativa de homicídio foi o ponto final de uma longa trajetória de violência doméstica. "Se, naquela época, existisse o tipo de proteção que a lei hoje proporciona, teria sido mais fácil eu sair daquela situação", diz ela em entrevista à Folha durante o encerramento do 1º Fórum Brasileiro de Enfrentamento à Violência Doméstica, promovido pelo instituto que leva seu nome.
Para ela, mulheres de classes sociais mais altas, vítimas de violência, costumam evitar a denúncia de seus agressores por vergonha, por medo de perderem confortos e privilégios ou para manter a imagem da família.
"Exemplos de mulheres como Ana Hickmann estimulam pessoas mais bem vistas na sociedade, que têm uma estrutura familiar boa e estável, a dizer chega e denunciar", afirma. "E só então a realidade que ela estava vivendo aparece."
PERGUNTA - Por que casos de violência doméstica contra mulheres bem-sucedidas e famosas, como Ana Hickmann, causam tanta surpresa?
MARIA DA PENHA - Porque as pessoas pensam que só a mulher preta sofre violência doméstica. E não é essa a realidade. A alta sociedade se esquiva de denunciar essa violência, seja por vergonha, seja por estar vivendo uma situação confortável, cujos privilégios seriam perdidos a partir da denúncia. Quando a violência é exacerbada, então a coragem aparece.
Estamos vendo o sucesso de mulheres que tomaram essa decisão e que conseguiram se livrar da situação de violência. Exemplos de mulheres como Ana Hickmann estimulam pessoas mais bem vistas na sociedade, que têm uma estrutura familiar boa e estável, a dizer chega e denunciar. E só então a realidade que ela estava vivendo aparece.
P. - A Lei Maria da Penha é de 2006. Apesar de ser considerada completa, ela nunca foi plenamente implementada. O que ficou pelo caminho?
MP - O Centro de Referência da Mulher, que reúne serviço social, psicológico e jurídico, precisaria estar nas unidades de saúde de todos os municípios. A partir deles, as mulheres seriam encaminhadas para as políticas públicas acessórias, como delegacia da mulher, casa abrigo e capacitação para a independência financeira, que ficariam nas macro-regiões.
Alocar o Centro de Referência na unidade de saúde é importante especialmente nas cidades pequenas, para que o atendimento seja mais discreto. Não queremos que o gestor público tenha a vaidade de colocar um prédio bonito com o nome Centro de Referência da Mulher, porque, se a mulher adentrar aquele local, quando ela chegar em casa, o marido já sabe que foi denunciado.
P. - Algum outro mecanismo da lei também precisa ser aprimorado?
MP - A Patrulha de Maria da Penha, que hoje está em 60 municípios do país, também precisaria estar mais presente porque ela faz um trabalho importante na conscientização do homem.
A patrulha é composta por um casal de policiais e está informada sobre as mulheres com medida protetiva. A patrulha se dirige ao agressor, reafirmando a condição de ele não poder se aproximar daquela mulher, e se dirige à mulher para dizer que está ali para o que ela precisar.
P. - Quais dessas medidas teriam feito diferença no seu caso?
MP - No tempo em que eu sofri violência doméstica, eu acreditava no amor. Achava que ele estava me agredindo porque tinha acontecido alguma coisa com ele. Eu cheguei a perguntar: Você não quer separar? E ele dizia: "Não, nunca vou me separar de você". Era cômodo para ele ter um saco de pancadas para se satisfazer. Se, naquela época, existisse o tipo de proteção que a lei hoje proporciona, teria sido mais fácil eu sair daquela situação.
No meu caso, a medida mais importante foi o reconhecimento pela OEA [Organização dos Estados Americanos] de que se tratava de abuso do Poder Judiciário, que levou o meu agressor a ser julgado duas vezes, e o crime quase foi prescrito. Já fazia 19 anos e seis meses [da tentativa de homicídio] quando a OEA condenou o Brasil a concluir o processo, prender o agressor e criar políticas públicas de atendimento às mulheres em situação de violência.
P. - Mudanças da Lei Maria da Penha deram celeridade às medidas protetivas. E os processos?
MP - Eu sei o seguinte: a mídia mostra casos de feminicídio que estão quase à beira da prescrição do julgamento do agressor, como aconteceu no meu caso. E isso aí é uma tortura para quem perde uma filha ou uma mãe pelo feminicídio.
No caso de agressões, a medida protetiva é dada, a mulher é afastada, mas o julgamento não acontece, e os casos prescrevem. O Poder Judiciário tinha de estar mais atento porque, senão, não é feita a Justiça. Meu caso só obteve Justiça quando veio a condenação da OEA. O Poder Judiciário do meu estado foi omisso, acatou pedidos e recursos sem sentido. Se não fosse a OEA, eu hoje estava aqui como vítima de um assalto, não de uma tentativa de assassinato.
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